terça-feira, 30 de setembro de 2014

Como todos de minha geração a máquina fotográfica e a fotografia estiveram presentem em momentos como férias, festas, gravidez, nascimento e crescimento dos filhos.
Também haviam, na idos da infância, as fotos escolares e fotos da família, geralmente feitas por fotógrafos profissionais.
Tratava-se de um esforço de captura dos momentos supostamente felizes, de registos do tempo, como se a fotografia fosse um testemunho fiel do momento em que foi executada. 
Desfilar um álbum de fotografias diante dos olhos costuma ser um exercício prazenteiro de memória. Leoni, da banda Kid Abelha, apresenta em seus versos da música Fotografia, que o que fica na fotografia são os laços invisíveis do que havia no momento em que ela foi executada. 
Vivi esta experiência de maneira satisfatória até que surgissem em mim os primeiros sinais de envelhecimento. Desse ponto, mirar minha fotos tornou-se um exercício doloroso e deslocado. 
Baudrillard afirma que criar uma imagem consiste em ir retirando do objeto todas as suas dimensões, uma a uma,: peso, o relevo, o perfume, a profundidade, o tempo, a continuidade e o sentido. Acredito que a dor que passei a experimentar diante de minhas fotos antigas evidenciavam essa falta denunciada por  Baudrillard.
Lúcia Santaella corrobora meus sentimentos em seu livro Imagem: cognição, semiótica, mídia quando afirma que "o enquadramento recorta o real sob um certo ponto de vista, um obturador guilhotina a duração, o fluxo, a continuidade do tempo"
A temática "fotografia", presente em BORDA, escrito em um momento de incômodo com o envelhecimento, reflete  um tanto desse mal estar, desconforto e estranhamento diante do objeto fotografia.

NSL
30/09/14

domingo, 28 de setembro de 2014

Em BORDA, é possível ouvir como a turbulência do "eu mulher" ressoa em mim. Não estou no mundo como mulher impunemente. Desde a infância a rejeição ao lugar de "menos que os homens", ao qual eu nasci destinada, instalou em mim uma guerra na busca da auto-afirmação. 
Os esforços de libertação do corpo e da mente nem sempre foram bem-vindos entre minha família e minha comunidade. A sensação de inadequação e o comportamento transgressor me acompanham até a idade adulta.   
No entanto, leitora voraz que sou, fui tropeçando em literaturas que me ajudaram a ter uma visão externa daquilo que vivia como repressão sexual. Foram muitas, mas dentre elas destaco Marina Colasanti, Marilena Chauí, Margaret Mead e Simone de Beauvoir. Suas obras me ajudaram a perceber que uma outra experiência com o feminino era possível.
Sou desencanada com essa categorizações que os literatos costumam fazer (poesia de mulher, de negro de gay, de pobre etc.). Achar que poesia possui uma categoria me parece uma incompetência critica, mas se isso vier a acontecer com o livro BORDA, provavelmente estarei entre três ou mais dessas categorias. E a categoria de poesia de mulher será uma delas. 

NSL
28/09/14

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

BORDA foi finalizado em 2012. São poemas escritos desde 2007. O primeiro contrato de edição, dezembro de 2012, fracassou alguns meses depois e eu, que ainda vivo a contradição entre publicar ou não publicar, pensei em desistir.

Me sinto muito satisfeita com o retorno dos leitores no facebook e no blog (hoje não passa de 150 visitas por dia mas já cheguei a ter 500).A certeza de que meus poemas são lidos e o que fui aprendendo com curtidas e compartilhamentos me fez saber o que o meu leitor considera como poema de qualidade. Me ajudou também a saber qual poema agrada qual tipo de leitor. É um exercício fantástico, coisa que um livro demora muito mais tempo para retornar. 
Mas o estigma de autora não publicada me perseguia e em outubro de 2013 Mariana Botelho, que é minha leitora mais próxima e critica fiel, me aconselhou a procurar Eduardo Lacerda. Poucos dias depois do livro enviado ele me manda a resposta "Gostei muito do seu livro, vamos publicar? Me senti exultante. Nem uma ressalva, só esse "vamos publicar?" Eu havia ascendido à categoria de autores publicáveis.  
Assinei o contrato em outubro de 2013 e a partir daí começou a espera. Espera e uma certa preocupação. Assisti uma reportagem em que ele mostrava a Editora Patuá em sua casa e contava como funcionava tudo. Eduardo Lacerda trabalha sozinho e recebe quase duzentos  originais para análise todo mês. Sabia que ia demorar. E demorou. Mas chegou.
Agora, em setembro de 2014, numa visita que ele fez a Belo Horizonte para um dialogo acerca de editoras  no Letras e Ponto ele confirmou meu lançamento para novembro. Foi só alegria.
Desde então sou só preparativos: prefácio, lugar, quantidade, estratégia de divulgação, convocação de amigos e parentes (rsrsrrs). Este blog é uma das estratégias mas vai haver e-mails, mensagens inbox e evento no facebook também. Estou tentando descolar com os familiares mais abastados os comes e bebes, mas ainda não sei como vai ser. 
Relendo tudo isto aqui penso no Galeano:

"A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar."

Comecei a escrever em 2007, num caderno azul de capa dura que meu marido me deu durante uma internação de dois meses num hospital psiquiátrico. Era só catarse, agora vai ser livro. É ou não é um excelente caminho?

NSL

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

O processo de criação de um poema

O processo de criação de um poema envolve inúmeras variáveis. Emoções como amor, raiva, tristeza é até o tédio podem expandir e tomar forma de um poema. Um sonho pode nos dar um poema ou parte dele. Objetos, pessoas, circunstâncias podem se relevar diante de nós a ponto de se impor como poema. Até fragmentos de conversas, frase lidas aqui e ali podem virar um poema.
Poucos poemas emergem completos ou com sua forma definitiva. Poucos poemas são publicados imediatamente ao seu término. Alguns precisam amadurecer para adoçar.
Quando comecei a escrever, em 2007, ainda usava agendas para anotar ideias e construir poemas. Hoje raramente recorro ao papel e caneta. Começo um poema na página de postagem do blog e é nela que o finalizo. Gosto da plasticidade deste mecanismo, a possibilidade reversível de testar palavras e versos em várias posições dentro do poema, a acessibilidade imediata a dicionários de sinônimos, de antônimos e de rimas torna a página em branco do computador o melhor espaço de escrita. Ao final de cada semestre imprimo todos, encaderno e guardo para o caso de superbugs ou problemas no blog. Eles também são arquivados no meu e-mail, em uma pasta chamada poemas. 
Gostaria de dar um exemplo simples para evidenciar esse processo. Provavelmente o produto não será um bom poema, uma vez que está sendo construído mecanicamente para explicar meu processo criativo. 
Às vezes acordo repetindo frases, que afloram de meus sonhos. Esta é uma delas: " Muitas roupas espalhadas pelo chão e na canção a palavra compartilhar."
Anotei a frase assim que acordei, fazendo arranjos sintáticos:

"há  roupas espalhadas pelo  chão
e na letra da canção
a palavra compartilhar"

Deste ponto passo para o esforço cognitivo de compreender a relação entre um verso e outro. Fica evidente para mim que não se trata de um poema completo. Mas o cerne da ideia está lá, é só encontrá-lo. Roupas espalhadas no chão me remete a desordem. Penso no desconforto que esta desordem me provoca. Sou do tipo que passeia pela casa recolhendo coisas e recolocando-as aos seus lugares. Penso no sentido que o compartilhamento tem para mim, nas suas possibilidades de encontro, vínculo e troca. Penso em uma canção que envolvesse essas possibilidades. 
Que relação há entre a desordem e as possibilidades de relação com o outro? Talvez a desordem que o compartilhar envolve? Ou a necessidade permanecer compartilhando apesar da desordem?
Como sei que em essência eu, a autora, não poderia renunciar ao compartilhamento enquanto encontro com o outro, opto pela segunda opção. 
A ideia em si não exige grande expansão, parece querer gerar um poema pequeno. Penso em finalizá-lo com três versos, como a primeira estrofe, gosto de simetria. Conto as sílabas de cada verso (10,7 e 8 versos). Penso a esse respeito e não sinto vontade de criar simetrias métricas entre os versos que já existem. Não que já não tenha acontecido. Algumas vezes faço isso.
Decido finalizar com apenas um verso síntese. Apesar das criticas ao tom professoral de minha poesia nem sempre posso resistir a ela, É o que sou. Finalizo com o seguinte verso

amar o outro é suportar a desordem

Agora passo a pensar se o poema receberá, ou não, um título. Só dou títulos aos meus poemas quando eles se impõem. Esse parece não exigir. 
Decido manter o poema com letras minúscula e sem pontuação, como faço com todos eles desde 2012. Letra maiúscula só para algo que for muito próprio, que demande relevo.
Assim dou por finalizado o poema. Assino e dato porque gosto de acompanhar o processo evolutivo de minha escrita. Amo perceber que hoje sou mais concisa que em 2011 e esta comparação só é possível porque os poemas foram datados. 

Apesar do modo simples como expliquei aqui, não se trata de algo simples, exige choro, ranger de dentes, suspiros. Mas também pode gerar uma emoção tão forte que geralmente me levanto e grito: "Yes, Yes!". Às vezes até danço. 

Bom, então aqui vai o poema de hoje, com a frase dos sonhos desta manhã e o processo de criação coletivo. Sim, coletivo. Imaginei cada um de vocês que terão coragem de ler este texto até o fim enquanto criava. Então ele é um pouco de vocês também. 
Ei-lo:


há  roupas espalhadas pelo  chão
e na letra da canção
a palavra compartilhar

amar o outro é suportar a desordem

NSL
22/09/14
   

domingo, 21 de setembro de 2014

Borda: a carne do encontro

Também é possível falar de borda a partir do modo filosófico que Meleau-Ponty vê a relação entre o visível e o observador. Para ele os seres, os objetos do mundo, as paisagens exige de nós a sua criação, mas compartilha conosco o trabalho criativo. Merleau-Ponty fala numa visão, numa fala e num pensar instituintes que empregam o instituído – a cultura – para fazer surgir o jamais visto, jamais dito, jamais pensado – a obra.

Marilena Chauí explica bem essa fenomenologia atravessada pela existência que Ponty aborda. Segundo ela abraçados e enlaçados, eu e o que observo nos tornamos a polpa carnal do mundo, carne de nosso corpo e carne das coisas. Carne: habitadas por significações ou significações encarnadas, as coisas do mundo possuem interior, são fulgurações de sentido, como as estrelas de Van Gogh; como elas, nosso corpo não é uma máquina de músculos e nervos ligados por relações de causalidade e observável do exterior, mas é interioridade que se exterioriza, é e faz sentido. Se elas e nós nos comunicamos não é porque elas agiriam sobre nossos órgãos dos sentidos e sobre nosso sistema nervoso, nem porque nosso entendimento as transformaria em idéias e conceitos, mas porque elas e nós participamos da mesma Carne. 

É ainda Chauí que explica que, segundo Ponty, a carne do Mundo é o que é visível por si mesmo, dizível por si mesmo, pensável por si mesmo, sem, contudo, ser um pleno maciço, e sim, paradoxalmente, um pleno poroso, habitado por um oco pelo qual um positivo contém nele mesmo o negativo que aspira por ser, uma falta no próprio Ser, fissura que se preenche ao cavar-se e que se cava ao preencher-se. Não é, pois, uma presença plena, mas presença habitada por uma ausência que não cessa de aspirar pelo preenchimento e que, a cada plenitude, remete a um vazio sem o qual não poderia vir a ser. A Carne do Mundo é o quiasma ou o entrecruzamento do visível e do invisível, do dizível e do indizível, do pensável e do impensável, cuja diferenciação, comunicação e reversibilidade se fazem por si mesmas como estofo do mundo.

É e nesse sentido que posso afirmar que a borda que apresento em meu livro é resultado desse processo. Meus poemas são essa porosidade representada como a borda porque encarnam o encontro entre o meu olhar e a coisa observada.

Você pode ler mais sobre isso no artigo na obra "O visível e o invisível" de Merleau-Ponty ou no artigo chamado "A obra fecunda" que a Marilena Chauí produziu para a revista Cult. 

sábado, 20 de setembro de 2014

Meridiano

Para falar de borda, seria possível lembrar dela como é citada por Paul Celan, o poeta romeno erradicado em Paris. Para Celan o poema afirma "a beira de si mesmo", limítrofe entre sua afirmação e o desejo incessante de um chamar o outro, alcançá-lo em sua extremidade, a quem deve dedicar-se.

Prova disso é que Celan nega a morte vivida no holocausto e escreve em uma língua que não é sua, o alemão. Língua marcada por esse outro que é também o poema, traço do acontecimento indelével e incomunicável porém “cruzador de trópicos” na beira de um caminho impossível.
A poesia conforme o poeta romeno lembra no final de "O Meridiano" : “encontro a ligação, e como o poema, o que leva ao encontro. Encontro algo – como a linguagem – imaterial, mas terreno, terrestre, algo circular, que volta a si mesmo sobre os dois pólos até – alegremente – cruzar os trópicos – encontro... um Meridiano. 

O discurso de "Meridiano" está em "Paul Celan collected prose" Psychology Press , 2003 - 67 Páginas

Lâmina

Não tive pai que me cortasse
quem me cortou foi a poesia
cindiu minh'alma como lâmina
e me fez pousar segura 
sobre a tragédia que é a vida

desnecessário foi
desintegrar a linguagem
empregar luta corporal
me desintegrei primeiro
palavras me atravessaram


Assim tão só
assim tão pó
assim tão pouco


Vou refazendo as bordas do furo
preenchendo espaços com palavras
palavras hoje me costuram

NSL
03 /12/11

Gary Snyder



Inauguro hoje este que será o espaço de divulgação de meu livro BORDA.
Este blog será  um ambiente de discussão do temas abordados no mesmo e de divulgação acerca de lançamento assim como de detalhes do processo criativo. Espero que gostem.