domingo, 21 de setembro de 2014

Borda: a carne do encontro

Também é possível falar de borda a partir do modo filosófico que Meleau-Ponty vê a relação entre o visível e o observador. Para ele os seres, os objetos do mundo, as paisagens exige de nós a sua criação, mas compartilha conosco o trabalho criativo. Merleau-Ponty fala numa visão, numa fala e num pensar instituintes que empregam o instituído – a cultura – para fazer surgir o jamais visto, jamais dito, jamais pensado – a obra.

Marilena Chauí explica bem essa fenomenologia atravessada pela existência que Ponty aborda. Segundo ela abraçados e enlaçados, eu e o que observo nos tornamos a polpa carnal do mundo, carne de nosso corpo e carne das coisas. Carne: habitadas por significações ou significações encarnadas, as coisas do mundo possuem interior, são fulgurações de sentido, como as estrelas de Van Gogh; como elas, nosso corpo não é uma máquina de músculos e nervos ligados por relações de causalidade e observável do exterior, mas é interioridade que se exterioriza, é e faz sentido. Se elas e nós nos comunicamos não é porque elas agiriam sobre nossos órgãos dos sentidos e sobre nosso sistema nervoso, nem porque nosso entendimento as transformaria em idéias e conceitos, mas porque elas e nós participamos da mesma Carne. 

É ainda Chauí que explica que, segundo Ponty, a carne do Mundo é o que é visível por si mesmo, dizível por si mesmo, pensável por si mesmo, sem, contudo, ser um pleno maciço, e sim, paradoxalmente, um pleno poroso, habitado por um oco pelo qual um positivo contém nele mesmo o negativo que aspira por ser, uma falta no próprio Ser, fissura que se preenche ao cavar-se e que se cava ao preencher-se. Não é, pois, uma presença plena, mas presença habitada por uma ausência que não cessa de aspirar pelo preenchimento e que, a cada plenitude, remete a um vazio sem o qual não poderia vir a ser. A Carne do Mundo é o quiasma ou o entrecruzamento do visível e do invisível, do dizível e do indizível, do pensável e do impensável, cuja diferenciação, comunicação e reversibilidade se fazem por si mesmas como estofo do mundo.

É e nesse sentido que posso afirmar que a borda que apresento em meu livro é resultado desse processo. Meus poemas são essa porosidade representada como a borda porque encarnam o encontro entre o meu olhar e a coisa observada.

Você pode ler mais sobre isso no artigo na obra "O visível e o invisível" de Merleau-Ponty ou no artigo chamado "A obra fecunda" que a Marilena Chauí produziu para a revista Cult. 

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